Amigos, eis aí o convite para o lançamento do "Pedrinhas Miudinhas - Ensaios sobre ruas, aldeias e terreiros", livro que reune 41 pequenos textos que escrevi sobre as encantarias brasileiras. O desenho da capa é do André Dahmer, a orelha é do jornalista Álvaro Costa e Silva e a apresentação é do Nei Lopes. Reproduzo abaixo, integralmente, o texto que o mestre Nei escreveu.
O caminho das pedras. (Nei Lopes)
Quem
por acaso menospreza a religiosidade africana recriada no Brasil e nas
Américas, achando que ela não passa de “um amontoado de crendices e
superstições sem pé nem cabeça” – como já se disse por aí –, está muito
enganado. E quem, sob esse ou outro motivo, nunca se debruçou sobre o copioso
acervo representado pelos relatos históricos e míticos (toda mitologia tem seu
mitologema, como “todo boato tem um fundo de verdade”) dessa tradição múltipla,
não sabe o que está perdendo.
O
antropólogo francês Marcel Griaule, já na década de 1930, percebeu a
importância das matrizes desse acervo. E, graças a essa compreensão e ao
aprofundamento nesse conhecimento, tornou-se o primeiro antropólogo da
Sorbonne, a excelentíssima universidade de Paris.
No
livro Filosofia e religião dos negros,
publicado em 1950, Griaule, afirmando a alta importância do saber e da
espiritualidade africana, ressaltava: “Basta nos debruçarmos sobre esse
conjunto de crenças e cultos para encontrar uma estrutura religiosa firme e
digna”. E recomendava que outros o fizessem.
Na
mesma linha de pensamento, no livro Cultura
tradicional bantu, de 1985, o padre espanhol Raúl Ruiz de Asúa Altuna
repertoriava os princípios filosóficos contidos na religiosidade dos povos
bantos (de Angola, Congo etc.), como, aliás, já o fizera, na década de 1940,
outro sacerdote, o belga Placide Tempels.
Pois
o autor deste livro “fez a lição” dos padres e ouviu a recomendação do mestre
antropólogo francês. Mas antes de ouvi-la, já tinha escutado e compreendido o
chamado dos tambores do xambá, uma das “nações” do xangô, o “candomblé
pernambucano”. E com eles aprendeu que, assim como o candomblé da Bahia procede
dos nagôs e jejes dos atuais Benin e Nigéria, o xambá vem do povo Chamba ou Tchamba, do oeste do atual Camarões.
Mas,
além do xambá de sua tradição familiar, Luiz Antônio Simas aproximou-se também,
ritualisticamente, das tradições que sustentam o culto jeje-nagô aos orixás, o
qual, por sua vez, tem como “eixo de transmissão” todo o saber concentrado nos
milhares de relatos mitológicos do oráculo Ifá (Fá, entre os jejes), através do qual fala Orumilá, o grande Senhor
do saber e do destino.
Mestre
da História e das coisas dos deuses e do samba, dedicado cientista daquela
espécie de ciência histórica que emana da boca do povo, o “caboclo” Simas “sabe
das coisas”, ou melhor: vive as
coisas que sabe; e extrai delas o sumo, como estas Pedrinhas Miudinhas. Nelas,
que já nas páginas dos jornais prenunciavam sua sina de fascinação, o leitor
vai ter o prazer e o encantamento de ver se entrecruzarem caminhos, avatares,
qualidades e quantidades tão aparentemente distintos e distantes quanto
Elegbara, o “dono do corpo” e Luiz Gonzaga, o “rei do baião”; Juscelino
Kubitschek, o “presidente bossa-nova” e Massinokou Alapong, mãe fânti-axânti do
Maranhão; o partideiro Aniceto do Império Serrano e a cabocla Mariana,
“princesa da Turquia”; Seu Sete da Lira, exu músico da umbanda e Charles
Darwin, pai do evolucionismo; Noel Rosa, o “poeta da Vila” e Jesuíno Brilhante,
“gentil-homem do cangaço”; Círio de Nazaré e São Cristóvão Futebol e Regatas.
Compondo esse fantástico-real universo e formando com eles um caleidoscópico e
belíssimo painel, reina e brinca, travessa, a brasilidade de Simas, um cara que
sabe.
Irmão
e parceiro, não só meu como de todos os encantados de Aruanda, Aiocá, Ilê Aiê;
do Orum, do Jurema, do São Serruê etc., compadre Simas, com estas “pedrinhas”
comove. Principalmente porque mostra um Brasil feito de muitos brasis; onde mestiçagem não significa
supremacia e menosprezo da identidade resultante para com aquelas que a
plasmaram; nem sincretismo
representa capitulação e, sim – como sabiam os exércitos da Antiguidade
clássica, ao tomarem para si os deuses dos inimigos –, acréscimo de força
vital.
Profissional
da arte da instrução, o professor Luiz Antônio Simas sabe perfeitamente o que
representou o encontro, nas Américas e no Brasil, das culturas vindas da África
com as nativas e as de todas as outras procedências. E ensina, neste livro,
como, do ponto de vista espiritual, esse múltiplo encontro gerou um rico
patrimônio; que longe de ser desprezível ou menor, tem mais é que ser conhecido
e respeitado como fonte inesgotável, que é, de saber e encantamento.
Last but not least, fica patente neste
livro que na encantaria (vertente religiosa sincrética e mestiça, que cultua os
seres encantados) um caboclo pode muito bem ser turco ou austríaco sem deixar
de ser brasileiro. E disso, nem mesmo o antropólogo Griaule e os padres Tempels
e Altuna imaginaram que o Espírito africano fosse capaz.
Nei Lopes – autor de Kitábu, o livro do saber e do espírito
negro-africanos, Ed. Senac-Rio, 2005.